"Moderadores da linguagem, fotógrafos, anotadores de diários
Vocês e suas memórias estão mortos, congelados
Perdidos num presente de passagem que nunca pára
Aqui vive a encarnação da matéria
Uma língua eterna
Como uma chama queimando a escuridão
A vida é a carne ainda no osso
se contorcendo sobre a terra"
Existem filmes e filmes, assim como cineastas e cineastas. Muitos dos cineastas famosos e/ou criticamente aclamados começaram suas carreiras fazendo filmes do próprio bolso, com baixo orçamento e liberdade total de criação. Não raro, essas produções eram mais uma forma do cineasta provar a si mesmo que conseguiria filmar algo, que do que uma experiência cinematográfica concreta. Mas, para muitos cineastas, sua total liberdade de criação trazia a possibilidade de explorar uma série de elementos do cinema, subverter o padrão e ir até os limites do que um filme pode fazer. Fome Animal, de Peter Jackson é um exemplo disso. Mas acredito que o tema do post de hoje foi quem chegou mais longe de algo tão experimental que quase não pode ser reconhecido como cinema.
E. Elias Merhige é um nome pouco conhecido para a maioria das pessoas. Em Hollywood, ele é lembrado pelo magistral A Sombra do Vampiro (citado no meu post sobre vampiros na ficção), e não muito mais do que isso. Merhige é um cara não muito mainstream, por assim dizer. Ele se interessa bastante por ocultismo, paranormal e acredita que o cinema é a única forma de arte significativa na nossa era. Só isso já seria o suficiente para perceber que ele não é um cineasta padrão. Mas um dos seus primeiros filmes acaba sendo a prova definitiva que ele, ou é muito visionário, ou não bate bem da cabeça.
Begotten é uma produção lançada em 1991, desenvolvida de forma totalmente experimental que traz uma versão do diretor para o mito da criação. Misturando crenças e fazendo alegorias, a história retrata temas como a criação do mundo, o homem original e uma série de outros elementos de mitologias ou religiões diversas, especialmente muito simbolismo pagão, de forma estritamente visual – e perturbadora. O filme não possui diálogos, e está mais perto de uma pintura expressionista em vídeo do que uma produção cinematográfica. Se você não entende o significado da palavra “experimentalismo”, este é um filme que lhe traduz perfeitamente o conceito.
Begotten é recomendado para pessoas de mente extremamente aberta. Se você assiste apenas filmes hollywoodianos e seus filmes de terror didáticos, fuja dessa produção, pois você definitivamente não irá gostar - tanto que, sem uma sinopse apropriada, é muito difícil para qualquer espectador entender as linhas gerais da história. De qualquer maneira, para aqueles que gostam de se aventurar por histórias fora do convencional, Begotten é o mais fora do convencional de todos – pelo menos que chegou às minhas mãos –, podem acreditar.
P.S.: Não creio que vocês encontrarão o filme por aqui, mas procurem na internet que vocês acharão facilmente.
Curiosidades:
- “Begotten”, em inglês, quer dizer, em tradução livre, algo como “Criado”, “Gerado” “Que veio a ser”;
- Merhige revelou posteriormente que o filme é inspirado em experiências de quase morte (onde a pessoa experimenta imagens e sensações quando chega próximo de morrer) que teve com 19 anos, quando esteve envolvido em um acidente de carro;
- O autor também dirigiu videoclipes das bandas Marilyn Manson, Interpol e Silencer.
- Cryptorchid, videoclipe de Marilyn Manson dirigido por Merhige, inclui cenas de Begotten;
- A filmagem parece muito precária, lembrando um filme absurdamente antigo. Na verdade esta era a intenção do cineasta, fazer com que o filme parecesse o registro em vídeo mais antigo do mundo;
- Originalmente, o cineasta pretendia que Begotten fosse o primeiro filme de uma trilogia, mas devido à dificuldade de se arrecadar fundos para os filmes, teve que abandonar essa idéia – e, se você assistir o filme, vai entender o porquê dessa dificuldade.
Na próxima Madrugada:
O personagem brasileiro mais maldito de todos os tempos está de volta aos quadrinhos, numa verdadeira amostra do verdadeiro terror e quadrinhos nacionais. Na próxima semana, Prontuário 666 – os anos de cárcere.