“Quero mostrar a você que o mundo real, como é entendido cientificamente, tem sua própria magia. Eu a chamo de magia poética, uma beleza inspiradora que é ainda mais mágica porque é real e podemos compreender como funciona. Em comparação à verdadeira beleza e magia do mundo real, o sobrenatural e os truques de palco parecem vulgares e sem graça. A magia da realidade não é sobrenatural, não é um truque. É absolutamente fascinante. Fascinante e real. Fascinante porque é real.”
É comum que as tradições humanas, com o tempo, acabem se apropriando
de certos conceitos e por muitas vezes distorcendo-os ou usando-os sob outro
contexto, que consolida-se no senso comum com um significado (às vezes
completamente) diferente do que originalmente proposto.
Usemos como exemplo a linguagem. A palavra “espírito” vem do
latim “spiritus”, que tem suas raízes também no grego e hebraico e significa, a
rigor, “sopro, respiração, vigor”. Ou seja, originalmente, dizer que um ser
vivo tem “espírito” era apenas dizer que este estava vivo. Talvez o caso mais conhecido
popularmente seja a palavra “Lúcifer”, que significa “O portador da luz”, embora este título seja atribuído ao principal adversário do
deus judaico-cristão. Se traçarmos um paralelo entre significados originais das
palavras e o contexto em que elas são usadas hoje, vamos ver o quanto nós
acabamos perdendo o sentido de certas coisas e, não raro, atribuindo a
estes termos significados sobrenaturais e místicos que não lhe cabem.
Dito isso, podemos dizer que A Magia da Realidade, de
Richard Dawkins, será provavelmente o caso de um livro cujo verdadeiro significado
(no caso aqui uso arbitrariamente como sinônimo de “intenção”) será distorcido ou mal-interpretado. A começar pelo título, que usa a palavra “magia”,
e que pode, já de cara, levar a críticas superficiais (aliás, a raiz
etimológica da palavra magia vem do persa e quer dizer “sábio”). Depois porque,
atualmente, quando se ouve falar em Richard Dawkins, lembramos apenas que ele é
um militante pró-ateísmo. Ou seja, quem é crente terá uma rejeição automática
às suas obras e quem não é o lerá com afinco. E acho que estes dois extremos
tendem a perder partes importantes do que faz A Magia da Realidade ser tão bom.
Como estudante de Filosofia, acabo ficando em uma posição “privilegiada”,
vamos dizer assim, de estar no “meio termo” entre ambas as correntes: a da fé
e a da ciência. Digo privilegiada porque quando se olha as coisas de fora, fica
muito mais fácil entender o que acontece e sugerir medidas eficientes de
mudança. Explico.
O embate entre religião e ciência é antigo, mas compreensível.
Quando a ciência surgiu, chegou com o pé na porta e dando soco na cara, sem
pedir permissão ou perguntar se alguém estava interessado. E mudou tudo. Ainda
hoje se discute o lugar da ciência e da religião, pelo fato de que,
originalmente, era da religião a tarefa de explicar os acontecimentos e, por
muito tempo, ela não teve concorrência neste quesito (a não ser outras
religiões, mas todas dentro do mesmo processo). Quando a ciência chegou,
ela foi muito mais eficiente em explicar a realidade, não só porque a
explicação científica é mais detalhada, mas principalmente porque a “verdade”
científica permite uma vantagem que a religião nunca teve: a de, a partir
destes conhecimentos, prever eventos, controlá-los e, consequentemente, usá-los
a nosso favor.
Só que a ciência é um instrumento, uma ferramenta e, como
tal, é neutra. Por isso qualquer descoberta científica pode ser usada tanto
para o “bem” quanto para o “mal”*. Ou seja, a ciência pode nos proporcionar
muita coisa (e nos proporcionou, pois graças à ela temos aviões, smartphones,
computadores e internet), mas nunca poderá dizer como usar um conhecimento.
Isso é trabalho para outro tipo de ferramenta.**
Porque passei diversos parágrafos pisando em ovos e falando
sobre o embate entre religião e ciência? Porque, para ler A Magia da Realidade,
você terá que colocar de lado seu ponto de vista extremista a respeito do
Dawkins (seja ele contra ou a favor) se quiser aproveitar a obra como um todo e
evitar distorções da mensagem e do significado do livro.
A Magia da Realidade é descrito como um livro do Dawkins
para crianças. Sinceramente, depois de ler a obra, considerei essa descrição
bastante limitada. Isso porque A Magia da Realidade está longe de ser um “livrinho
de ciências” do tipo que eu encontrava na época e que era criança, com
passatempos, jogos e outras coisas. O livro de Dawkins não tem nada de infantil.
O que ele faz é tentar usar uma linguagem mais simples para trazer a ciência
para um público que não o compreende direito. E, neste ponto, pelo menos aqui
no Brasil, as crianças são as que menos precisam desse livro.
A estrutura da obra é muito criativa e interessante: Cada
capítulo é a resposta de uma pergunta (que é o título do capítulo), que explica
cientificamente diversos aspectos da realidade, que vão desde quem foi a
primeira pessoa, porque existem tantos animais, do que são feitas as coisas,
porque existe noite e dia, inverno e verão e até se estamos sozinhos no
universo. Cada capítulo inicia descrevendo mitos de diversas culturas e épocas
a respeito daquele tema, que contrastam com a explicação científica.
É um livro bastante completo para quem conhece pouco de
ciência, e tem um nível de detalhamento suficiente para suprir a curiosidade e
tornar o conteúdo compreensível, mas ao mesmo tempo evita muitas tecnicalidades
(especialmente as matemáticas, graças à Osíris – sou péssimo em matemática) que
tornariam o conteúdo confuso e desinteressante. É verdade que, ainda assim, é
bastante conteúdo (por isso eu recomendaria, se isso fosse dado a crianças, que
elas lessem aos poucos para ir assimilando o conteúdo devagar), mas a forma
como é descrito, pelo menos na maioria das vezes, deixa a leitura agradável.
Para quem é fã de quadrinhos (e também fã de ótimas
ilustrações), há mais um motivo para adquirir A Magia da Realidade: a obra é
ricamente ilustrada com fotos, fotomontagens e ilustrações de Dave Mckean, mais
conhecido por ter ilustrado a Graphic Novel Asilo Arkham e
pela parceria com Neil Gaiman em diversas de suas obras, incluindo Sandman.
Posso dizer que as imagens são de encher os olhos e só por elas já valeria a
pena ter o livro em mãos.
É claro que a intenção de Dawkins com A Magia da Realidade
não é (tão) ingênua, a começar pelo subtítulo provocador ("como sabemos o que é verdade"). A obra busca também inspirar as crianças a verem a “magia” do
conhecimento científico e do universo físico real, sem precisar apelar para
crenças em superstições e mitos. Mas dizer que a obra é só isso seria
simplificar demais o esforço que o autor tem para com a divulgação ciência, uma
luta que vem de muito tempo e que já teve nomes como Carl Sagan em suas fileiras
e hoje conta com o próprio Dawkins, Neil DeGrasse Tyson e muitos outros.
Ninguém em sã consciência discordaria que conhecimento não
só é importante, como é fundamental para se mudar o mundo. Mas aí é que entra
toda a discussão ao qual me aprofundei nos primeiros parágrafos dessa resenha,
sobre religião e ciência: entenda A Magia da Realidade como um “manual de como
as coisas funcionam na realidade”, e apenas isso. Afinal de contas, não há como
negar a veracidade das informações ali contidas (até porque Dawkins deixa bem
claro os muitos pontos onde a ciência não tem certeza ou onde ela não tem ideia
da resposta). E deixem a religião de fora. Até porque, como eu já disse, a
ciência é um instrumento e o conhecimento é neutro. Saber o que fazer com esse
conhecimento requer um outro tipo de ferramenta, que nos ajude a distinguir o
certo do errado e a discernir entre a melhor forma de se aproveitar uma
descoberta. Esta poderia (e deveria) muito bem ser a tarefa da Religião. Não ir
de encontro à ciência, mas complementá-la, preparando as pessoas para
aprenderem a lidar com o conhecimento. Mas, para que isso acontecesse, seria
importante que ambas parassem de tentar abraçar áreas nas quais não estão aptas
a lidar e se ater às atribuições que lhes cabem: Uma a interpretar e explicar a
realidade, e a outra a nos ajudar a entender o que fazer com esse conhecimento.
Talvez um dia isso seja possível. Por enquanto, recomendo A
Magia da Realidade, seja para crianças, adolescentes ou adultos, e tanto para
quem já conhece a ciência quanto para quem quer conhecer, por mostrar o quanto ela
pode ser interessante e inspiradora. O livro é meio salgado, confesso, cerca de
R$ 54,00. Mas vale cada centavo, especialmente se você tiver filhos e espera
que um dia eles se interessem pelo mágico mundo da ciência.
*Coloquei as palavras “bem” e “mal” entre parênteses porque as considero relativas demais para se colocar como grandezas objetivas.
**A Filosofia possui uma disciplina para tratar disso, a
ética, mas decidi deixar este assunto de lado.