A serpente e o Arco-Íris

“Nas lendas do vodu, a serpente simboliza a Terra.
O arco-íris simboliza o céu.
Entre os dois, todas as criaturas devem viver e morrer.
Mas por ter uma alma, o homem pode ficar preso em um lugar terrível...
Onde a morte é apenas o começo”
Dizem que a vida imita a arte. Mas a verdade é que, na maior parte das vezes, o contrário é que está mais próximo da verdade. Não importa o quão estranhas sejam as histórias contadas por nossos antepassados, ou quão inacreditáveis sejam as lendas e superstições enraizadas em nossa cultura, é seguro afirmar que deve haver alguma fonte original, ainda que mínima, de onde provém tais histórias e superstições.

Seja a hipertricose, que explicara o surgimento do mito dos lobisomens; as exumações de cadáveres com catalepsia (quando o problema ainda não era conhecido), que por vezes acordavam dentro de um caixão e arranhavam-no por dentro no desespero de fugir, para explicar a crença dos vampiros; ou a velha e conhecida dos céticos, a pareidolia, que nos permite enxergar rostos e formas em qualquer coisa minimamente semelhante, para explicar as histórias de espíritos, fantasmas e demônios; é bem possível que exista algum fundo de verdade em cada história embora, é claro, o fundo de verdade provavelmente seja algo ridiculamente simples absurdamente exagerado.

Para os ocidentais, um dos temas mais exóticos e bizarros eram os zumbis. Antes do termo ser vinculado aos mortos-vivos criados por George Romero em A Noite dos Mortos Vivos, ele se referia principalmente aos corpos sem vida das crenças do Haiti, ressuscitados por um líder místico conhecido como mestre zumbi. Em resumo, um zumbi é um ser humano comum, que após a morte tem seu corpo (e apenas o corpo), trazido de volta à vida pelo tal mestre zumbi. Como o corpo ressuscitado não possui alma, ele se torna uma espécie de “robô”, sem sentimentos, capacidade de raciocínio ou vontade própria, que é controlado pelo mestre.

Um dos pesquisadores que mais tentou se aprofundar no tema foi Wade Davis, um antropólogo e etnobotânico da National Geographic Society que foi até o Haiti nos anos 80 a fim de pesquisar mais sobre o tema. Sua hipótese sobre como funciona o processo de “zumbificação”, que mistura uma complexa interação entre alucinógenos, toxinas e os poderes da sugestão e a força cultural, são lembradas até hoje, mesmo com algumas controvérsias.

Segundo a hipótese de Davis, os mestres zumbis produziam um tipo de poção feito de uma mistura de ingredientes exóticos, como baiacu, matéria vinda de cadáveres (Davis presenciou um xamã esmagar o crânio de uma criança morta há um mês ou dois, para adicionar à poção), lagartos frescos recém mortos, um sapo seco com um verme marinho ao redor dele (preparado antes), “ tcha-tcha” (uma espécie de leguminosa chamada albizzia) e "itching pea" (uma espécie de mucuna, outra planta leguminosa).

Aliado à poção, os mestes zumbis também faziam uso de Datura, uma planta que possui compostos com propriedades alucinógenas, e TTX (tetrodoxina), uma toxina vinda de um tipo de baiacu (tetraodontídeo), que bloqueia os potenciais de ação nos nervos. Esta substância liga-se aos poros dos canais de sódio voltagem-dependentes existentes nas membranas das células nervosas. Os sintomas do envenenamento por TTX são dormência/paralisação dos lábios e da língua, o aumento de parestesia (sensação de formigamento, picada, queimadura) de face e extremidades, que pode ser acompanhada de sensação de leveza ou flutuação. A fala é afetada e a pessoa envenenada apresenta comumente cianose (azul-arroxeada) e hipotensão, com convulsões, contração muscular, pupilas dilatadas, bradicardia e insuficiência respiratória. O paciente, embora totalmente paralisado, permanece consciente e lúcido até o período próximo da morte.

O processo de zumbificação era marcado pela teatralidade típica de rituais religiosos, o que garantia a atmosfera necessária à sugestão e proporcionava o ambiente para potencializar a crença. Assim, as pessoas afetadas pela TTX eram dadas como mortas e enterradas, para serem secretamente desenterradas durante à madrugada, longe dos olhos de curiosos, onde o zumbi era deixado dopado a fim de manter sua vontade própria dormente. E assim estava criado um zumbi.

Os “zumbis” podiam ser usados para os motivos mais diversos (todos altamente questionáveis, segundo nossos padrões), como vingança, disputa de terras e até como trabalhadores braçais em fazendas de homens poderosos ou até mesmo dos mestres zumbis.

A pesquisa de Wade Davis no Haiti gerou um livro chamado The Serpent And The Rainbow (A Serpente e o Arco-Íris, atualmente fora de catálogo no Brasil), publicado em 1985, onde Davis acompanha o caso de Clairvius Narcisse, um homem que alega ter sido um zumbi durante dois anos. Mais tarde, Davis publicou também Passage of Darkness – The Ethnobiology of the Haitian Zombie (Passagem para as Trevas – A Etnobiologia do Zumbi Haitiano, em tradução livre – não publicado no Brasil), de 1988, onde o autor basicamente expande sua pesquisa e se aprofunda mais na cultura, política e sociedade haitiana, mostrando também os aspectos sociais do fenômeno zumbi.


Com todas estas fascinantes informações sobre o tema, talvez o mais curioso de tudo isso seja o fato de que A Serpente e o Arco-Íris, um livro acadêmico, deu origem a um filme de terror de Hollywood de mesmo nome.

Dirigido por ninguém menos que Wes Craven (A Hora do Pesadelo, As Criaturas Atrás das Paredes, A Maldição de Samantha), The Serpent and the Rainbow (A Maldição dos Mortos Vivos, no título em português) acompanha o Etnobotânico e Antropólogo Dennis Allan (Bill Pulmann), e sua interação com a cultura do Haiti, ao ser enviado para a região por uma empresa farmacêutica a fim de investigar uma droga usada no vodu haitiano, na esperança de usá-la como anestésico e comercializá-la no ocidente. A exploração de Alan o leva a conhecer a estrutura social e cultura do Haiti, e sua relação com o sobrenatual, o místico e com o fenômeno zumbi.



Embora apenas levemente baseado no livro de Davis, o filme vale por trazer uma história de terror (e de zumbi) buscando uma explicação científica e mais realista, sem apelar tanto para os aspectos sobrenaturais. Um ponto bastante positivo de Wes Craven, que durante os anos 80 estava sempre buscando reinventar histórias clássicas dando um ponto de vista diferente. Nem sempre o resultado era bom – A Maldição dos Mortos Vivos, de fato, não é lá um filmaço –, mas valem sempre pela curiosidade.

Atualmente, as pesquisas de Wade Davis são objeto de controvérsia, devido a possíveis falhas no método usado pelo cientista para coletar seus dados e informações imprecisas. Ainda assim, seu estudo serve como uma base interessante para se tentar compreender essa rica e complexa cultura zumbi que existe até hoje no Haiti.

Mais sobre zumbis no podcast Uarévaa sobre o tema.

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