“Columba livia... O pombo comum.
Não se enganem: Escondida nesse corpo angelical está a alma de um autêntico roedor como vocês, mas, graças à aparência, ele tem uma reputação muito melhor perante a sociedade! Até igreja ele freqüenta!
Entre! Não faça cerimônia. Por detrás dessa silhueta poética sabemos que se esconde um apetite voraz pela podridão...
E vocês, meus amigos ratos, levam toda a má fama e culpa sozinhos. Condenados pelos seus instintos naturais...
Pelos juízes hipócritas que assimilaram muitas de suas características por vontade própria...”
É difícil que algum brasileiro não conheça o nome Zé do Caixão. Apesar de ter ficado fora da mídia por muito tempo, o personagem criado por José Mojica Marins se enraizou no inconsciente coletivo da população de forma tal que hoje é quase impossível não conhecê-lo. Atualmente, no entanto, talvez o personagem esteja mais atrelado à uma imagem cômica do que uma imagem assustadora.
O que é uma pena porque Zé do Caixão, quando foi criado, não era nada engraçado. Um homem amargurado, de poucos amigos que assombrava uma cidadezinha conservadora com sua postura ateísta. Um homem que não tinha crenças, e a única coisa na qual confiava era a ciência. Alguém que não respeitava nada, a não ser suas próprias convicções... E as crianças. Sim, porque, segundo sua visão, as crianças são a janela para o futuro. A herança genética que as crianças recebem de seus pais é a única forma de manter um legado vivo. A verdadeira imortalidade, segundo o próprio Zé do Caixão, é o sangue. Por isso ele passa seus dias conduzindo experimentos em busca de encontrar a mulher ideal, aquela que lhe dará o filho perfeito.
Quem não conhece muito a fundo Zé do Caixão pode se surpreender com esse perfil descrito do personagem. Isso porque, hoje em dia, Zé do Caixão se tornou um personagem atrelado de certa forma ao próprio sobrenatural do qual nunca acreditou. Talvez por isso o personagem hoje tenha se tornado quase uma caricatura do que já foi.
Zé do Caixão surgiu pela primeira vez em 1063, na produção “À meia-noite levarei sua alma”, na qual conhecemos o personagem e suas motivações. Diferente da maioria das histórias da época, o terror não estava em monstros de outro planeta, lobisomens ou vampiros, e sim na própria mente doentia humana e nas perversões de Zé do Caixão em sua busca incessante pela “imortalidade”. Criado, por José Mojica Marins, que também o interpreta, Zé do Caixão surgiu justamente para fazer um novo tipo de terror, um terror mais brasileiro, segundo o próprio autor.
Deu muito certo, tanto que o personagem ficou muito popular e participou de outros filmes, programas de TV e histórias em quadrinhos. Mas a principal trajetória do personagem se encontrava em dois filmes: À meia-noite levarei a sua alma e a sequência, À meia-noite encarnarei no teu cadáver. Mojica pretendia produzir um terceiro filme que fechasse a trilogia, mas nunca havia conseguido levar a idéia adiante, até recentemente.
Mais de 40 anos depois de À meia-noite encarnarei no teu cadáver, o autor finalmente consegue produzir Encarnação do Demônio, para fechar em grande estilo a história do personagem. Mas hoje não é sobre isso o que eu vou falar. Na verdade, vou falar sobre o que acontece nesse meio tempo.
40 anos é um bom tempo, e muita coisa acontece em tantas décadas. É uma vida inteira, na verdade. Mojica entendeu isso, e então decidiu voltar, não só para o cinema, mas para outro meio que sempre lhe acolheu: os quadrinhos. Daí surgiu Prontuário 666 – os anos de cárcere de Zé do Caixão, que explora parte desse período de tempo em que o personagem esteve preso, entre o final de À meia-noite levarei sua alma e o começo de Encarnação do Demônio.
Prontuário 666 na verdade se passa quase todo em 1988, onde vemos Zé do Caixão encarcerado, mas aproveitando o “intervalo” em seus planos para conduzir experimentos que possam ajudá-lo em sua cruzada pela imortalidade do sangue.
A HQ merece, com louvor, um lugar entre as melhores HQs já produzidas no Brasil. Muitos podem achar isso um exagero, mas explico meu ponto de vista: eu defendo que existe uma diferença entre quadrinhos feitos no Brasil e quadrinhos nacionais. Enquanto um é apenas HQs feitas por brasileiros, o outro explora a identidade nacional. E quando eu falo em “identidade nacional”, me refiro à mais do que mostrar crianças de rua ou a seca no nordeste, e sim tratar daquilo que é intrinsecamente brasileiro. Mas não vou me estender no assunto, explico melhor esse meu ponto de vista no meu formspring, onde respondi várias perguntas sobre o tema.
No caso de Prontuário 666, o que temos é uma história que respeita a mitologia desenvolvida por Zé do Caixão, com todos os seus maneirismos e “clichês”, mas cuja narrativa gráfica é desenvolvida de forma absurdamente criativa e original, abusando do traço estilizado e a narrativa gráfica surreal. Além disso, mostra uma história tipicamente brasileira que se passa na prisão, sem se deixar levar pela tentação de mostrar o óbvio. Além disso, a hq também aproveita para fazer homenagens sutis aos filmes anteriores e traz o Zé do Caixão para os novos tempos, sem descaracterizá-lo.
Os criadores da Hq são Adriana Brunstein (texto) e Samuel Casal (texto e arte), grande artista do circuito. Este último é o responsável pela arte estilizada e perfeitamente adequada para um personagem como este, utilizando-se apenas de técnicas de claro/escuro e uma narrativa sequencial extremamente competente que foge do óbvio.
Uma hq que não tinha muitas pretensões a não ser preencher a lacuna entre o segundo e terceiro filmes do Zé do Caixão, acabou sendo uma história que traz um novo fôlego aos quadrinhos brasileiros e ainda revitaliza o gênero nas hqs, tornando-se um verdadeiro exemplo de quadrinho nacional.
Na próxima Madrugada:
Uma mulher quer muito ter seu filho. Mesmo que ele nasça com um apetite um pouco... Diferente. Na próxima semana, Grace.